A desmobilização popular como projeto comum entre Democratas e Republicanos
Quando sete milhões vão às ruas, mas nada acontece: Afirmar que o sistema de dois partidos dos Estados Unidos é uma farsa não é algo novo ou revolucionário; já na metade do século passado, o líder anticolonial da Tanzânia, Julius Nyerere, afirmava: "Os Estados Unidos também é um regime de partido único, mas em típica extravagância norte-americano, eles têm dois deles."
POLÍTICAINTERNACIONALLUIZ FRANCISCO
10/19/20256 min ler


Neste último dia 18/10, milhões de Norte-americanos saíram novamente às ruas em protesto contra as medidas repressivas e autoritárias do governo de Donald Trump. Em mais de 2500 cidades, quase sete milhões de pessoas se somaram aos chamados "No Kings Protests", encabeçados pelo Partindo Democrata e com apoio das mais diversas organizações da sociedade estadunidense. No mesmo dia, o prefeito de Chicago - bastião de poder Democrata e casa de sua máquina eleitoral desde os anos 1950 - convocou a população a uma greve geral, exigindo o fim da "tirania" de Trump depois das cortes barrarem temporariamente a tentativa do presidente de decretar uma intervenção federal na cidade. Em torno de 300,000 pessoas ouviram o prefeito em seu apaixonado discurso contra "os ultra-ricos e grandes corporações", invocando a memória das rebeliões de escravos no século 18 como exemplo de resistência à opressão do capital.
Para quem vê de fora, essas notícias parecem promissoras: milhões de pessoas ao redor dos EUA se opondo abertamente aos avanços autoritários de Donald Trump e suas medidas arbitrárias de perseguição e repressão violenta. Porém, a realidade é mais complexa. O cenário já começa a mudar quando contextualizamos os atuais protestos dentro deste conturbado ano de governo Trump. Em pouco menos de dez meses, o Trumpismo logrou um aparelhamento sem precedentes do Estado, iniciado ainda em seu primeiro governo; ainda em 2020, Trump havia indicado cerca de um terço dos juízes federais, incluindo três dos nove ministros da Suprema Corte e 54 dos 179 juízes das poderosas “Courts of Appeal”, cujo poder de revisão judicial e criação de precedentes jurídicos só se limita pelas decisões do Supremo. Em um sistema de “common law”, onde boa parte do funcionamento do Estado se baseia em tradição e precedentes, foi fácil expurgar a burocracia de carreira sob o auspício da “eficácia governamental” e substituí-la por uma máquina estatal ideologicamente alinhada ao Trumpismo e amparada em suas arbitrariedades pelas cortes. Assim, e governando por decreto, Trump conseguiu recrudescer a repressão policial, a perseguição política, e criminalização de imigrantes em um país que, a muito tempo, já podia ser classificado como um estado policial. Porém, as medidas do atual governo não são, de forma alguma, novidade.
Seu supremacismo étnico tem raízes em um dos sistemas de apartheid mais brutais e legalmente definidos da história, que culminou, após a pressão popular pela dessegregação nos anos 1960, em um aparto de policiamento ostensivo e encarceramento privado e em massa sem comparações, e de apoio bipartidário. Sua desumanização de povos asiáticos – em especial, árabes e chineses – foi construída sobre quase dois séculos de orientalismo, populismo trabalhista, e ódio nativista, que culminaram em duas décadas e meia de “guerra ao terror” e milhões de mortos e refugiados, sob governos Republicanos e Democratas. Somada à “guerra às drogas”, política racista de encarceramento em massa nas periferias do país que substituiu as leis de segregação racial nos anos 1970, essa mesma guerra ao terror se converteu em uma arma contra as populações latino-americanas, tanto nos EUA quanto no resto do continente, justificando a criminalização das populações hispânicas e um maior intervencionismo na América Latina.
Não à toa, o governo de Barack Obama – ícone da esquerda liberal e direita progressista nos EUA e no mundo – é ainda o período de mais abrangente deportação em massa na história norte-americana, apesar dos esforços empolvorosos de Trump para superá-lo. Mesmo o apoio irrestrito e bipartidário ao estado colonial de Israel em seu genocídio contra o povo Palestino, evidenciado pelo suporte de Joe Biden e Donald Trump aos últimos dois anos de massacres em Gaza, é interesse histórico do império norte-americano na desestabilização do Oriente Médio; como disse o então senador Joe Biden no final dos anos 1980, no contexto da Guerra Civil do Líbano e Primeira Intifada, “se não houvesse uma Israel [no Oriente Médio], teríamos que criá-la.”
Mais evidente, porém, são as políticas econômicas complementares do neoliberalismo norte-americano que vêm sendo implantadas por consecutivos governos, independentemente de alinhamento partidário, desde os anos 1980. Apesar de algumas migalhas estendidas à população trabalhadora durante períodos de crise, como o Obamacare na esteira da crise de 2008 ou a adoção da retórica de “taxação dos super-ricos” adotada pelos Democratas após a pandemia de Covid-19, o avanço neoliberal continua a canibalizar as entranhas do império, sacrificando milhões de trabalhadores pela manutenção de taxas de lucro e auxílio estatal às grandes corporações por meio de pacotes de investimento e protecionismo. Exemplo disso foi a escolha do governo Obama de abandonar a população à própria sorte no pós-bolha de 2008, enquanto autorizava bilhões em pacotes de emergência para os bancos e corporações que causaram a crise.
Efetivamente, podemos afirmar então que não existe oposição entre os partidos nos EUA; já faz décadas que Democratas e Republicanos mantém uma disputa meramente estética, focada em uma suposta "guerra cultural" que mobiliza as massas em seu apelo emocional para questões de moralidade, ideais e identidade, enquanto adotam políticas complementares que mantém um verniz democrático sobre a ditadura da burguesia. Afinal, ambos partidos servem aos interesses da mesma classe - apesar de representarem os interesses de setores diversos, as vezes em conluio e as vezes em confronto, do grande capital. Essa "política despolitizada", desprovida de qualquer ímpeto de mudança, que relega à classe trabalhadora somente um poder limitado de escolha entre dois candidatos da ordem burguesa, não foi abalada com a ascensão de Donald Trump e seu projeto fascista de renovação nacional. Trump, como todo fascista, também serve aos interesses do grande capital; mas seu projeto de poder é muito mais brutal e eficiente na aplicação da repressão do que a democracia liberal permite em tempos de estabilidade. Afinal, são justamente as ferramentas ideológicas e repressivas do fascismo que o tornam atraente às elites em crise – e, no caso dos Estados Unidos, à classe dominante de um império em plena derrocada.
Por isso, quando manifestações orgânicas das populações racializadas e criminalizadas nos EUA explodiram diante da escalada violenta da polícia migratória nos barrios e periferias pelo país, a reação imediata do Partido Democrata – essa falsa oposição – foi de canalizar a revolta para meios passivos, controlados, e desprovidos de demandas reais e de uma estratégia maior capaz de gerar alguma mudança. As manifestações “No Kings”, assim como a instrumentalização do movimento “Black Lives Matter” em 2020, vieram para dirigir a um horizonte normalizante e aceitável ao sistema norte-americano essas revoltas espontâneas e a auto-organização de parte da classe trabalhadora para a defesa de seus membros mais juridicamente vulneráveis – tornando palatável às elites e à “classe média” uma forma de protesto completamente desprovida de sua radicalidade original. Suas únicas demandas eram voltadas aos próprios manifestantes – para que não engajassem em uma desobediência civil disruptiva da ordem jurídica, ou mesmo para que não agitassem bandeiras que pudessem criar “desunião” das forças anti-Trump. Basta lembrar que foi no governo Democrata de Biden que milhares de pessoas foram presas por sua militância pró-Palestina para entender do que estas solicitações se tratam. Sem organizações da esquerda capazes de fazer frente à máquina Democrata, principalmente ao seu controle quase absoluto dos sindicatos, o pacto velado entre os partidos para a auto-proteção da classe burguesa continua – assim como o pacto aberto contra qualquer forma de autonomia popular e partidos radicais que possam organizar a classe trabalhadora em defesa de seus próprios interesses. Neste momento de vulnerabilidade do império norte-americano, em que o caminho do fascismo se apresenta como a opção mais eficiente para a reestruturação produtiva dos Estados Unidos frente a realidade de seu declínio enquanto potência hegemônica e ascensão de uma nova multipolaridade, não há espaço de manobra para que a burguesia permita uma confrontação real entre as classes; o Partido Democrata, novamente, assume o papel – como o fez nos anos 1960 – de mediador des-radicalizante entre a revolta das massas e a realidade objetiva da crise e da repressão.
BOLCHENEWS
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