Anatomia de uma Paz Imperialista: Como os EUA Orquestraram o Cessar-Fogo Tailândia-Camboja

Um cessar fogo que, assim como o conflito, foi diretamente influenciado pelos interesses dos EUA.

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Matheus Pessoa

7/31/20255 min ler

Anatomia de uma Paz Imperialista: Como os EUA Orquestraram o Cessar-Fogo Tailândia-Camboja

O recente cessar-fogo entre a Tailândia e o Camboja, anunciado em 29 de julho de 2025, não representa um triunfo da paz ou da diplomacia regional, mas sim uma demonstração brutal do poder imperialista contemporâneo. Analisado através de uma lente materialista, o episódio revela a mecânica da dominação exercida pelos Estados Unidos, que, agindo em nome dos interesses do capital financeiro, utiliza a coerção econômica e a intimidação militar para gerir os conflitos periféricos de acordo com a sua agenda hegemônica. A trégua, mediada nominalmente pela Malásia, é, na realidade, um produto direto da chantagem de Washington, expondo a impotência de órgãos como a ASEAN e a submissão das burguesias compradoras locais aos ditames do centro imperial.

I. A Farsa do Conflito Regional e a Mão Oculta do Imperialismo

O conflito fronteiriço que eclodiu em 24 de julho de 2025, resultando na morte de dezenas e no deslocamento de mais de 200.000 proletários de ambos os lados, serve perfeitamente aos interesses de "dividir para reinar". Tais disputas, alimentadas por nacionalismos burgueses, desviam a atenção da luta de classes fundamental e criam as condições de instabilidade que justificam a intervenção externa.

Contudo, quando o conflito ameaçou a estabilidade necessária para a exploração contínua de mão de obra e recursos na região, o imperialismo norte-americano interveio de forma decisiva. A cronologia dos eventos é clara: a violência escala, mas cessa abruptamente assim que o Presidente dos EUA, Donald Trump, entra em cena. Em 27 de julho, Trump emite uma ameaça inequívoca através das redes sociais, vinculando a continuidade das relações comerciais à cessação das hostilidades. "Não queremos fazer nenhum Acordo, com nenhum dos Países, se eles estiverem lutando", declarou, numa admissão explícita de que a política externa é um mero apêndice da política comercial — ou seja, dos interesses do capital.

A subsequente reunião na Malásia, embora apresentada como uma iniciativa da ASEAN, foi uma peça de teatro diplomático. A presença de embaixadores dos EUA e da China no encontro confirma que qualquer resolução significativa na periferia global requer a sanção das potências imperialistas concorrentes. A paz não foi construída; foi imposta.

II. A Arma do Capital: Chantagem Econômica e a Superexploração do Proletariado

A ferramenta central dessa imposição foi a coerção econômica, disfarçada de política tarifária. As chamadas "Tarifas do Dia da Libertação", anunciadas em abril de 2025, são um exemplo clássico de guerra econômica. Para o Camboja, a ameaça era existencial. Com uma tarifa punitiva de 36% sobre as suas exportações para os EUA — o seu principal mercado, que representou quase 10 mil milhões de dólares em 2024 —, a economia cambojana foi colocada de joelhos.

Essa vulnerabilidade não é acidental; é uma característica estrutural da dependência neocolonial. A economia do Camboja foi moldada para servir ao capital internacional, com mais de um terço do seu PIB dependente das exportações. O setor de vestuário, calçados e artigos de viagem, que emprega mais de 900.000 trabalhadores — na sua maioria mulheres —, tornou-se o calcanhar de Aquiles deliberadamente explorado por Washington.

A ameaça de Trump e a subsequente "pausa" nas negociações tarifárias durante o conflito não foram atos diplomáticos, mas sim chantagem pura. Os EUA transformaram a subsistência de quase um milhão de trabalhadores cambojanos, especialmente mulheres que são frequentemente as únicas provedoras de suas famílias, em uma moeda de troca para alcançar os seus objetivos geopolíticos. O sofrimento do proletariado do Sudeste Asiático é o dano colateral calculado e aceito na busca pela estabilidade regional, que, para o imperialismo, significa simplesmente um ambiente seguro para a extração de mais-valia. O FMI, uma ferramenta do capital financeiro global, previu uma devastadora redução de 10 pontos percentuais no crescimento do PIB do Camboja, um custo a ser pago pela classe trabalhadora pela ousadia de suas elites entrarem em um conflito não sancionado.

III. A Estrutura de Vigilância: A Presença Militar como Garantia de Submissão

A coerção econômica dos EUA é sustentada por uma vasta e permanente arquitetura militar na região, garantindo que a influência não dependa apenas de ameaças comerciais.

U-Tapao: Esta base aérea na Tailândia não é apenas uma instalação para exercícios conjuntos. É um posto avançado histórico do poder militar dos EUA, utilizado para bombardear secretamente o Camboja durante a Guerra do Vietnã e para apoiar as guerras imperialistas no Iraque e no Afeganistão. A sua presença contínua, mesmo que disfarçada sob a bandeira da cooperação, serve como um lembrete constante da capacidade de projeção de força de Washington.

JUSMAGTHAI e Cobra Gold: Programas como o Joint United States Military Advisory Group, Thailand (JUSMAGTHAI) e os exercícios anuais Cobra Gold representam uma forma mais sofisticada de controle. Ao treinar e integrar as forças armadas tailandesas com as doutrinas e equipamentos dos EUA, o Pentágono garante o alinhamento ideológico e operacional da elite militar local. Isso transforma o exército tailandês em um agente indireto dos interesses dos EUA, uma força "nacional" cuja lealdade estrutural está comprometida com o poder hegemônico. É o imperialismo em sua forma mais eficiente: o controle sem a necessidade de ocupação direta.

IV. A Impotência da ASEAN: A Falência da Burguesia Regional

A crise expôs de forma contundente a farsa da "centralidade da ASEAN". Esta associação de nações, composta por regimes cujas classes dominantes estão profundamente integradas e dependentes do sistema capitalista global, é estruturalmente incapaz de oferecer uma solução soberana ou anti-imperialista. O chamado "Caminho da ASEAN", com a sua ênfase na não-interferência, serve na prática para paralisar a ação coletiva contra a agressão, seja ela de um vizinho ou de uma potência externa.

O facto de o Camboja ter recorrido ao Conselho de Segurança da ONU e de a resolução final ter sido ditada pela pressão dos EUA demonstra o desprezo que os próprios Estados-membros têm pela capacidade do bloco. A rapidez da "solução" imposta por Washington, em contraste com a inércia da ASEAN, reforça perigosamente a narrativa de que apenas a intervenção de uma grande potência pode resolver crises regionais. Isso não apenas mina a credibilidade da ASEAN, mas aprofunda a dependência das nações do Sudeste Asiático em relação aos seus senhores imperialistas.

O Imperialismo Coercitivo e a Necessidade da Luta Anti-Imperialista

O cessar-fogo de 29 de julho de 2025 não é uma paz duradoura, mas uma pausa forçada, um realinhamento imposto pelo poder hegemônico para proteger os seus interesses estratégicos e econômicos. O episódio é um retrato fiel do imperialismo do século XXI: uma força coercitiva que utiliza a interdependência econômica que ele próprio criou como uma arma, que mantém uma presença militar global para intimidar e controlar, e que manipula os conflitos locais para reafirmar o seu domínio.

Os Estados Unidos agiram não como um mediador benevolente, mas como o capo da ordem capitalista global, disciplinando dois estados vassalos cuja disputa se tornou um inconveniente. A verdadeira vítima, como sempre, é o proletariado do Camboja e da Tailândia, cujas vidas e meios de subsistência são peças descartáveis no tabuleiro de xadrez geopolítico.

A única conclusão possível é que a soberania genuína e a paz verdadeira para os povos do Sudeste Asiático não virão de acordos mediados por potências imperialistas ou de organizações de fachada como a ASEAN. Elas só podem ser alcançadas através da luta unificada e anti-imperialista da classe trabalhadora da região, visando a derrubada das burguesias compradoras locais e a libertação completa do sistema capitalista global que gera guerra, exploração e dominação.